As diversas operações realizadas pelos órgãos de controle, bem como a inovação normativa proporcionaram um despertar para a necessidade de estabelecimento de novos padrões éticos dentro das corporações.
terça-feira, 8 de dezembro de 2020
Com o advento da lei 12.846/13 (que dispôs sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira), regulamentada pelo decreto 8.420/15, a criação de Programas de Integridade (Compliance) dentro das empresas passou a ter uma enorme relevância, resultando em uma difusão de forma mais expressiva.
As diversas operações realizadas pelos órgãos de controle, bem como a inovação normativa proporcionaram um despertar para a necessidade de estabelecimento de novos padrões éticos dentro das corporações, de forma a evitar conflitos de interesses e a prática de atos de corrupção.
Dentro deste contexto, alguns entes da Federação elaboraram leis estabelecendo a exigência de Programas de Integridade (Compliance), no âmbito das empresas, para contratação com poder público, a exemplo da lei estadual 7.753/17 (Rio de Janeiro) e da lei 6.112/18 (Distrito Federal).
Tão logo que editadas as primeiras normas neste sentido, diversos operadores do direito começaram a discutir a constitucionalidade (ou não) dessas leis, traçando a análise sob o aspecto formal e material.
Quanto ao aspecto formal, a alegativa contrária a tais normas estaria fulcrada na suposta violação à competência privativa da União para dispor sobre regras gerais relacionadas às licitações e contratos públicos, conforme previsto no art. 22, XXVII, da Constituição Federal, in verbis:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[…]
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Entretanto, como visto, a Carta Magna apenas torna privativa a competência para legislar sobre normas gerais relacionadas ao tema em apreço, o que fora perfeitamente perpetrado pela lei 8.666/93, não interferindo, ao nosso sentir, na possibilidade de Estados, Distrito Federal e Municípios disporem sobre a exigência de Programas de Compliance para contratação com tais entes.
Isso porque, o art. 3o da lei 8.666/93 estabelece como premissa para contratações com a administração pública o atendimento ao Princípio da Moralidade. Veja-se:
Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Sob esta perspectiva, a criação de norma específica tratando sobre exigência de Programa de Integridade para contratação com Poder Público, em nada colide com a norma geral (Lei de Licitações). Pelo contrário, apenas reforça a finalidade da norma, estabelecendo mecanismos que enfatizem a moralidade e probidade buscadas na lei 8.666/93.
Tanto é assim, que a própria Lei de Licitações prevê, por exemplo, o atendimento a requisitos preconizados em lei especial para fins de comprovação da qualificação técnica. Veja-se:
Art. 30. A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a:
I – registro ou inscrição na entidade profissional competente;
II – comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;
III – comprovação, fornecida pelo órgão licitante, de que recebeu os documentos, e, quando exigido, de que tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação;
IV – prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso.
Portanto, a existência de normas específicas que reforcem os princípios constantes da Lei de Licitações não afronta a lei 8.666/93, nem tampouco ao art. 22, XXVII, da Constituição Federal.
Quanto ao aspecto material, alguns juristas sustentam a afronta ao Princípio da Ampla Competitividade, por entenderem que somente as empresas que dispunham de Programas de Compliance é que participariam de certames ou, ainda, não precisariam ter este custo para disputar o contrato licitado, o que poderia violar o art. 37, XXI, da Constituição Federal.
Com as devidas vênias aos que entendem desta forma, tal posicionamento não se sustenta. Isso porque, tanto a lei estadual 7.753/17 (Rio de Janeiro) e da lei 6.112/18 (Distrito Federal), por exemplo, não estabelecem a obrigatoriedade da existência do Programa de Compliance como requisito habilitatório, mas sim como condição contratual, com prazo razoável para implementação.
O Tribunal de Contas da União já possui uma consolidada jurisprudência, no sentido de permitir exigências outras que garantam ou aperfeiçoem a execução contratual, desde que não sejam requisitos habilitatórios, mas sim contratuais. Veja-se:
VOTO CONDUTOR DO ACÓRDÃO Nº 365/2017 – TCU – PLENÁRIO. RELATOR: MINISTRO JOSÉ MÚCIO MONTEIRO.
12. A exigência de comprovação de propriedade ou de compromisso de cessão, locação/leasing ou venda das máquinas e equipamentos considerados essenciais para o cumprimento do objeto da licitação e de infraestrutura predial, por sua vez, contraria o art. 30, § 6º, da Lei 8.666/93, que proíbe exigências de propriedade e de locação prévia para a participação de empresas em licitações.
13. Conforme anotado pela unidade técnica, requerer que o licitante mantenha o acervo necessário à execução do contrato apenas para que possa concorrer é medida que afeta sobremaneira a competitividade do certame. Por outro lado, a ausência desse tipo de exigência não implica a contratação de “eventuais empresas irresponsáveis”, como aventado nas defesas, uma vez que nada obsta que a cobrança de tal comprovação seja feita por ocasião da assinatura do contrato.
Desta forma, qualquer empresa interessada no processo licitatório poderia participar, sem qualquer entrave ou restrição, e somente na hipótese de ser vencedora é que surgiria a obrigação de implementar o Programa de Compliance.
Ademais, como dito, a própria Lei de Licitações estabelece a possibilidade de lei especial dispor sobre requisitos específicos para habilitação, o que, ao nosso sentir, autorizaria, inclusive, a inclusão de tal programa como pressuposto habilitatório.
Portanto, torna-se clara a inexistência de qualquer inconstitucionalidade, seja material ou formal, servindo tais normas como indutoras de um comportamento desejável pela sociedade, reforçando o Princípio Constitucional da Moralidade (art. 37, CF/88).
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*Andrei Aguiar é sócio Aguiar Advogados. Presidente da Associação Brasileira de Advogados, Regional do Ceará.